“E se hoje fosse, quais elementos Candinho usaria na retratação de ‘Guerra e Paz’?” Essa foi a questão levantada por Ronaldo Fraga para criar a coleção que fechou o quinto dia de desfiles da 47ª edição do São Paulo Fashion Week. E foi com elementos de hoje que o estilista mineiro fez sua coleção, que mais uma vez jogou luz ao momento político e de intransigência por qual passa o pais
Se o artista retratou a Guerra, com a fome de retirantes nordestinos, a mortalidade infantil e a opressão do poder econômico com hienas, simbolizando o flagelo do Brasil – e a Paz com brincadeiras de crianças, músicos, pipas e criandas, Ronaldo apresentou um versão mais crua. Modelos vestiam capacetes (criados por Marcos Costa), com enfeites como armas atirando flores, bandeiras LGBTS destruídas, bonecas negras mortas e ensaguentadas, livros sujos de sangue. Para aliviar um pouco a angústia, alguns vinham, com pombas brancas pousadas sobre eles.
A releitura desce para a roupa. Alguns com bordados mostravam pipas destruídas e outro lembrava a imagem de Marielle Franco desfeita em fios. Imagens de índios vinham sob um índio crucificado, como Cristo. A tradução perfeita do momento de ruptura pelo qual passa o Brasil, em que as minorias, o meio ambiente, a cultura e educação são menosprezados, enquanto o discurso de ódio ganha voz até no altos escalões políticos.
Túnicas, calças largas, vestidos soltos, blusas mais compridas vestiam o casting, composto por modelos e não-modelos. Além dos murais expostos na ONU, pintados entre 1955 e 1956, Cândido Portinari foi considerado também o pintor do café, mostrando o árduo trabalho de negros na cultura da planta. As vestes dos trabalhadores surgiram com a estampa Café do Brasil. No final, os modelos pisaram em grãos de café no meio da passarela, jogando para cima a “bebida brasileira”.
No meio dessa realidade árida, crochês em blusas vinham em cores vibrantes, como amarelo, lranja, roxo e azul, manchados em dégradé. As figuras dos murais do artista ganharam nova leitura como estampas. Para embalar o desfile-manifesto-poético de Ronaldo Fraga, uma roda de músicos do conjunto A Quatro Vozes”, entoando sambas antigos e melodias como “Iolanda”, de Chico Buarque e Pablo Milanez. “Nenhuma arte é isenta. Muda, ela pode estar de acordo com desumanidades.” A frase de Portinari traduz o sentimento do estilista, que como artista não se cala diante da apatia que vemos no pais.