O professor e historiador de moda João Braga participou de live no perfil do “Elas no Tapete Vermelho”, no Instagram, e falou sobre como a moda se comporta nas pandemias, durante e pós-guerras. Sempre há mudanças, disse. “A principal características da moda e mudar com regularidade. E essa mudança fez surgir o conceito de moda”, afirmou ele, que também explicou que moda é diferente de indumentária.
Apesar de enfatizar que trabalha com história da moda, estudando o passado e o presente, e não o futuro, João Braga acredita que, após passar a crise econômica por conta da pandemia, as pessoas vão querer celebrar, seja a descoberta de uma vacina ou de um remédio. E isso deve trazer uma sofisticação nas formas de expressão, seja na arquitetura, nas artes e na moda. “Não significa luxo, mas a forma como as coisas passarão a ser feitas”, afirmou.
Confira trechos da live abaixo, que pode ser encarada como uma verdadeira aula de história da moda, pois ele fala do avanço dos brechós após a gripe espanhola e a Primeira Guerra Mundial; o estilo hippie, que foi incorporado pela moda, após o movimento que pregava a paz contra o Guerra do Vietnã, e até mesmo a forma como a Aids influenciou a moda dos anos 1980. No final do texto, veja o link para a live.
Moda é mudança
“A principal característica da moda é mudar com regularidade. E isso fez o surgir o conceito de moda. Antes, era indumentária, tudo o que a pessoa coloca sobre o corpo. O conceito de moda passou a surgir a partir da Idade Média, na Europa, com a ideia de ascensão social. Com surgimento das universidades, as pessoas passaram a estudar. Se você tem acesso ao conhecimento, você quer reconhecimento desse conhecimento. E uma das formas de ser reconhecido são com identidades vestíveis e reconhecidas visivelmente. Isso contribuiu para o surgimento do conceito de moda.”
Indumentária
“Indumentária é tudo é tudo aquilo que a pessoa coloca sobre o corpo, não só roupa, mas um brinco, um colar, um batom, um gel no cabelo. A gente imagina que seja só roupa. O conceito veio depois, não a primeira vez que se colocou algo sobre o corpo.”
Pudor, Adorno e Proteção
“Há três razões para a criação desse conceito de indumentária. Do ponto de vista religioso, teológico, colocou-se alguma coisa sobre o corpo pela questão do pudor. A roupa surge por um caráter de indignidade. A roupa era de folha de figueira, mas Deus perdoa o homem e dá um material melhor, a pele de animal. Os dois pontos de vista científico, não consideram o pudor. Um deles é que se colocou alguma coisa no corpo pelo aspecto do adorno, que é inerente à condição humana, você querer se diferenciar entre seus pares. O outro ponto de vista científico é pelo aspecto de proteção, contra as intempéries, contra um briga, para subir numa árvore e não se machucar, por exemplo. Qualquer coisa que colocamos sobre o corpo tem essas três abrangências. Um desses conceitos acaba se sobrepondo sobre os outros. Isso é indumentária. Pode ser um traje de celebração, um piercing, um calçado, tatuagem, roupa. Essa roupa pode ou não ter um código de moda, que vai mudar com uma certa regularidade.”
Evolução e pesquisas
Avanços têxteis sempre existiram, como os tecidos feitos com ouro no Império Bizantino, ou a invenção das rendas e veludos, em Veneza, durante a Renascença. O próprio náilon (no original, nylon), que é de 1935, mas só entrou em circulação em 1938, quando foi patenteado pela DuPont, que hoje se chama Invista. Situações constrangedoras e delicadas, como essas como estamos vivendo, de mudanças de paradigmas, nos obrigam a soluções mais rápidas, que favorecem esses desenvolvimentos, inclusive na área de medicina. Vai se evoluir muito, apesar de, lamentavelmente, muitas pessoas estarem morrendo ao redor do mundo todo.”
Penicilina, inseticida e meia de náilon
“A professora Serafina (do Amaral, historiadora de moda), que se dizia testemunha ocular do século 20, falava que as mulheres elencavam os três principais benefícios depois da Segunda Guerra. O uso do inseticida, da penicilina (inventada em 1928, mas com uso maciço após a guerra) e o retorno das meias de náilon. As meias de seda já existiam e eram usadas na década de 1920, com uma sutileza de transparência, mas a meia de náilon trouxe um toque diferente. Tinham uma costura atrás. Com a Segunda Guerra, toda a produção de náilon foi direcionada para o fabrico de paraquedas, o que ajudou os aliados a vencerem a guerra. Imagine que os paraquedas japoneses eram de seda, caríssimos; Já os de lona , eram pesadíssimos. Os de náilon trouxe inúmeros benefícios. Durante a guerra, as mulheres faziam riscas nas pernas com lápis de olho para parecerem que estava de meia.”
O nome “nylon”
“Nunca consegui checar com precisão se o produto se chama “nylon” pelo fato de que teria sucesso comercial em Nova York e Londres, daí o nome ser as iniciais de Nova York e London. Isso não é provado. Quando os norte-americanos entram para a guerra e vão usar o náilon para o fabrico de de paraquedas, os aliados puderam ter mais paraquedistas, levar mais remédios, chegarem a lugares mais distantes.Os norte-americanos inventaram, então, uma nova sigla: Now you’ve lost, Old Nippon” (Agora você perdeu, velho japonês), referindo-se aos paraquedas de seda dos japoneses.”
Celebração pós-pandemia e guerras
“Depois de momentos como esses (de guerras e pandemias), as pessoas querem celebrar. Os franceses chamaram (essa atitude) nos anos 1920, de La Joie de Vivre (A Alegria de Viver), após a Primeira Guerra (1914-1918), a gripe espanhola ter sido controlada (de janeiro de 1918 a dezembro de 1920) e a Revolução Russa (1917). Houve, então, a vontade de celebrar. Isso fica muito nítido no filme e livro “O Grande Gatsby”. Nós continuamos sendo seres humanos, não atingimos a perfeição, então vamos ter a postura de recuperar o tempo perdido, de celebrar a descoberta de uma vacina, de algum avanço. Isso é comum na postura do ser humano principalmente nos nossos dias em que existe uma liberdade de expressão muito grande. Eu acredito que num primeiro momento, depois do controle dessa situação pandêmica, haverá mais de pé-no-chão, por um motivo econômico. Afinal, moda também é business. É um fenômeno ocidental e capitalista. Surgiu na Europa, logo depois do fundamento do capitalismo. Vivemos numa sociedade de grande consumo e produção, sistema imposto principalmente pela cultura definida pelos Estados Unidos. Então, por questões financeiras, num primeiro momento, as pessoas vão ficar um pouco mais contidas. Talvez algumas até como postura, para dialogar com os novos tempos, mesmo querendo fazer uma coisa mais sofisticada, não vai fazer para não ser criticado.”
Sofisticação estética
“Quando o sistema econômico se restabelecer, eu creio que haverá uma sofisticação estética, o surgimento de um novo padrão, que vai gerar respostas nas artes, no design, na arquitetura, na moda e em qualquer outra forma de expressão que envolva criatividade. As coisas não brotam da noite para o dia. Os tecidos antivirais que estão sendo lançados (a Rhodia, com um novo fio e a Nanox, com o apoio da Fapesp, com tecidos com banho de filamentos de prata, que podem desativar o novo coronavírus), são consequências de pesquisas anteriores. E já vivemos os avanços dessa alta performance tecnológica têxtil há um bom tempo. Por exemplo, o náilon foi hi-tech , mas hoje não é novidade.Todo esse processo de desenvolvimento já estava acontecendo e ajudou o surgimento desses tecidos que evitam o Covid-19.Tudo o que está acontecendo, como performance tecnológica, inclusão social, sustentabilidade, só vai ganhar força e se transformar de uma forma nova.”
Não é luxo
“Costumo brincar que a moda se mata para se manter viva. A moda precisa lançar um diferencial e, normalmente, porque não é regra, criar essas novas regras de uma forma sofisticada. Isso não é necessariamente luxo, mas sofisticação, que pode ser no designer, no conforto, na performance tecnológica têxtil, no comportamento. Penso dessa forma, não trago respostas absolutas, mas seja o que for que venha, possivelmente será mais apurado do que o que nós já estamos vivendo e praticando.”
Não novo, mas de uma maneira nova
“Vou citar uma frase em latim, usada pelos romanos há mais de 2 mil, para definir o ponto de vista estético, da arquitetura, da moda: “Non Nova, Sed Nove” (“Não nova, mas de maneira nova”). É um tecido novo? Não, mas que surge de uma maneira nova. A roupa já existe, sim, mas vamos continuar nos vestindo de uma maneira nova. Um exemplo é o New Look Dior, lançado em 1947, depois da Segunda Guerra, fazendo uma releitura da Belle Époque, da cintura marcada e saia rodada. Para mim, a melhor palavra que define esse comportamento é “Zeitgeist” que significa, em alemão, ar dos tempos. E podemos ver a sofisticação em outros momentos, como após a Primeira Guerra, com o art decô, muito luxuoso, possível de ver no filme que citei, “O Grande Gatsby”, e em outros, como “Meia Noite em Paris”, de Wood Allen. Depois da quebra da bolsa da bolsa de Nova York, em 1929, esse luxo é reduzido, mas volta, mais popularizado, em 1935. Ou seja, um estilo que não é novo, mas usado de forma nova.”
Avanço dos brechós
“Depois da Primeira Guerra mundial e da gripe espanhola, como houve muitos mortos, começaram a comercializar roupas usadas. Isso contribuiu para o avanço da ideia de brechó, porque sobrou muita roupa na Europa. Não é o início do brechó, mas uma avanço, porque essa história de vender roupa usada já existia antes. E foi muito incentivada durante o processo de reurbanização em Paris, no tempo de Napoleão 3º, quando o prefeito de Paris, Barão de Haussmann demoliu a Paris medieval e construiu aquela Paris chamada estética Haussmanniana. Por conta disso, as pessoas que moravam nos cortiços tiveram que ir para a periferia. Já eram menos favorecidos e, na periferia, começaram a vender tudo o que tinham para sobreviver, inclusive as roupas. Por isso, o mercado das pulgas em Paris são na periferia.”
Guerra do Vietnã
“Veja como situações delicadas trazem novas realidades. O hippie nasceu em 1964, 1965 em São Francisco, de jovens que não queriam participar da Guerra do Vietnã. Depois disso, surge a moda hippie, e, em seguida, a moda unissex. Foi uma situação que trouxe novos paradigmas. Nos anos 1970, se sofisticou e virou hippie chic. Saint Laurent fez roupa hippie de forma extremamente sofisticada.”
Aids x Moda
“Por falar em pandemia, a Aids também modificou muito a moda. Primeiro modificou no modo, para depois modificar na moda, porque a Aids chegou matando as pessoas e, na fase terminal, ficavam quase pele e osso. O modo começou a privilegiar o fazer ginástica para não aparentar que fosse portador do vírus do HIV, pois inicialmente o grupo mais afetado pela Aids eram os homossexuais. Hoje sabemos que não é. Para as pessoas não aparentarem que estavam doentes, começaram a fazer ginástica para ganhar massa muscular. E a prova disso era adjetivar essas pessoas com palavras diferentes, algumas de cunho até negativo, como “bombado”, que está para explodir; “malhado”, em que a pessoa se debate na academia para parecer que tem massa muscular. Ou também, “sarado”, que significa curado. Isso não significa que todos que faziam academia para ganhar massa muscular estavam doentes, mas esse modo gerou corpos mais trabalhados. E, com o elastano, que já existia, começou-se a usar roupas mais justas. Inconscientemente, havia uma sensação de mais segurança com essas roupas ajustadas. Até porque vieram as campanhas para se proteger nas práticas sexuais com o conselho de usar preservativo. Uma das razões que a psicologia da moda explica é que as roupas justas são reflexos do uso do preservativo, que deixam o falo apertado e as pessoas se sentem seguram na prática do coito, na relação sexual.”
Ecstasy x moda utilitária
“Outro exemplo de que o modo influencia na moda é, por exemplo, a garrafinha de água. Antes, não andávamos com garrafinha de água, hoje se anda por hidratação, mas essa onda de água, veio por causa do ecstasy. Quando a pessoa ingere a droga, se desidrata. Por isso, os jovens que tomavam ecstasy andavam com a garrafinha para tomar água toda a hora. Não à toa, nos anos 1990, veio a onda da calça cargo, para levar a garrafinha no bolso, o bipe, posteriormente, o celular. Hoje, as garrafinhas não são usadas por causa da droga química, mas pela saúde. A pessoa está hidratando seu corpo. Aliás, a moda utilitária surgiu quando se precisava de praticidade, como na Revolução Industrial, em que os operários precisavam levar as ferramentas. Chanel também trouxe praticidade, com a bolsa de alça, para deixar as mãos livres. Ou seja, ‘não novo, mas de uma maneira nova’. O ar dos tempos exige que novas soluções sejam dadas para os mesmos problemas.”
Veja live completa abaixo