Foi a cobertura mais triste de minha carreira de jornalista, na qual atuo há mais de 30 anos. Cobri as 47 edições do São Paulo Fashion Week, a grande maioria presencialmente, em outras editando o material. Foi um choque ver o menino cair. Em princípio, parecia que tinha tropeçado nas fitas da sandália, mas revendo o vídeo, quem tropeça assim coloca as mãos primeiro para se proteger e não foi o que aconteceu. Quando ele caiu, ainda se mexeu. Em seguida, os bombeiros chegaram e o colocaram na maca.
Na hora, fiz fotos dele no chão e até vídeo do socorro, pois estava na minha frente. Mas optei por não publicar em respeito à família e a ele mesmo. Muita gente soltou suas imagens nas redes sociais. Eu preferi guardar para mim, pois não se sabia o que tinha acontecido. Se ele tivesse sobrevivido, publicaria.
Várias pessoas e até jornais estão falando que ele morreu na passarela. Realmente, não dá para afirmar isso. É achismo. Mas claro, rende cliques. Outros estão falando que ele tinha que receber massagens cardíacas na passarela. Mas será que os socorristas bombeiros não têm experiência para tomar a decisão correta? E eles chegaram segundos depois.
De qualquer forma, o choque foi grande. O desfile recomeçou depois que ele foi removido. Ao meu lado, estava uma amiga dele, que me falou seu nome. Ela ficou assustadíssima, nervosa, quase em estado de pânico. Confesso que não consegui mais prestar atenção em nada, só lembrava da cena de novo. Torcendo para que nada de pior tivesse acontecido. No calor do momento, e talvez achando que fosse só um desmaio, a marca e a direção do evento (veja nota abaixo) tomaram a decisão de continuar. Na hora, isso, para mim, foi estranho, porque não havia mais clima na sala de desfile.
Aconteceriam mais 4 desfiles depois – Flavia Aranha, Piet, Ponto Firme e Cavalera. No desfile da Flavia Aranha, ainda não se sabia sobre a morte, confirmada uma hora e pouco depois do ocorrido. O clima na sala de imprensa, porém, estava tenso, A assessoria tinha soltado apenas um comunicado que ele tinha sido removido para um hospital, mas já se comentava que tinham feito massagem cardíaca lá na Arca espaço onde aconteceu o evento, na Vila Leopoldina. Sabendo disso, não subi a nota do desmaio, preferi esperar uma noticia mais concreta. Não fui assistir ao desfile da Flavia Aranha para ficar no aguardo.
Quando chegou a confirmação, troquei o título e o lead e publiquei. Parecia uma coisa mecânica, mas meus pés saíram do chão, estava tremendo toda. Jornalistas à minha volta estavam chorando. Foi difícil continuar o trabalho, mas continuei. Liguei para um amigo e agente que o acolheu nos primeiros anos de carreira. Ele me disse que ele saudável e que Tales tinha morrido fazendo o que sempre sonhou: desfilando.
Parecia uma coisa mecânica, mas meus pés saíram do chão, estava tremendo toda. Jornalistas à minha volta estavam chorando.
Depois começaram os comentários de que ele não tinha comido nada, porque era vegetariano e não havia comida vegetariana, o que foi até publicado num grande jornal. Não era verdade, tinha patê de berinjela e lanches sem carne. E queijos, patrocinador do evento, caso ele não fosse vegano. Não se pode ser inconsequente nesta hora, não se pode falar leviandades e, pior, publicar. O imediatismo está matando a reflexão.
Sobre cancelar ou não? Sinceramente, fico sem poder dar uma resposta exata. Estou em cima do muro? Pode ser que sim. Um dos desfiles posteriores ao anúncio da morte foi o do Projeto Ponto Firme, capitaneado pelo estilista Gustavo Silvestre, na penitenciária Desembargador Adriano Marrey, em Guarulhos. Foi um trabalho de meses, dos detentos tecendo as peças. Foi um desfile lindo e engajado. Num momento em que é necessário falar de coisas boas neste Brasil, seria justo não desfilar? Seria justo não mostrar todo aquele lindo trabalho?
No desfile da Cavalera, o rapper Rico Dalasam, um dos tantos que cantaram na passarela, declamou em rap: “Ninguém mandou me chamar aqui. Mas já que me chamaram, vou falar: ninguém tinha que estar aqui. O cara acabou de morrer, não é?” Mas por que ele estava lá também e entrou na passarela?
Falei com a mãe do Tales ontem e ela foi enfática. “Cancelar ia trazer ele de volta? Nem ele gostaria disso. Era muito profissional.”
O que acho complicado é que muita gente que está criticando o fato de o evento não ter sido cancelado, que está falando que a moda morreu etc. sempre viveu e sobreviveu da moda. Foram agraciados com os presentes de primeira fila, destrataram seguranças com o conhecido “Você sabe com quem está falando?”. Eu mesma presenciei tal atitude no último desfile da Gisele Bûndchen, em abril de 2015. Vi também muita gente que, se não estava na primeira fila, não assistia ao evento. Há exceções. Há conhecidos que se posicionaram contra a continuidade do evento sem nunca mostrarem uma atitude que os desabonassem. Não posso ser injusta!
O contrassenso é que a tragédia aconteceu justamente na edição em que houve mais diversidade na passarela, em que muitas grifes trabalham com materiais ecológicos, que não têm loja física, em que houve mais negros desfilando e a recordista foi um negra, a Amira. Parece que este seria o caminho a seguir.
Pode ser que a morte do garoto levante um alerta. Afinal, a cena é forte, estava sendo transmitida ao vivo. Até a mãe dele, Heloisa Cotta, estava assistindo. Não me lembro de que algo parecido tenha acontecido em alguma passarela do mundo. Mas é preciso saber a real causa. O marido de uma prima minha, médico, teve morte súbita jogando futebol com médicos. Será que o menino morreu por causa da engrenagem cruel da moda? Numa hora dessa, não se pode ser leviano. É preciso reflexão.